domingo, 26 de outubro de 2008

Semelhanças entre Kafka e meu cigarro

Semelhanças entre Kafka e meu cigarro

26/10/2008

Acordou assim: meio inconseqüente. Quase 9 da manhã. Entre papéis, borrões de tinta em suas mãos e roupas espalhadas. Sentou-se à beira da cama e enxugou sua boca ainda embebida por histórias notívagas. Olhou para o lado e seus borrões estavam por todos os lados, perdidos quase divergentes em paredes. Os papéis em branco, as paredes forradas e suas mãos manchadas compunham o cenário de seu quarto. E, mesmo nu, ajoelhou-se diante de seu criado-mudo. Que de mudo não tinha nada. Neste pequeno móvel de cerejeira, lustrado com um verniz que trazia consigo reflexos de outrora, havia um altar. E, diante deste móvel, cerrou os olhos e iniciou uma oração febril nada compreensível. Ficou assim: sussurrando metáforas, metonímias e outras figuras que se desenhavam em sua mente. Permaneceu em transe por quase uma hora. E quando, finalmente, resolveu abrir os olhos, assustou-se. Escuridão. Nada mais enxergava e, ainda de joelhos, jogou o corpo para o lado de modo a derramar-se no chão. Em posição fetal, chorou todos os seus versos. Sua arte lhe escapava, escorria entre lágrimas. E seus berros preenchiam todo o quarto e, aos poucos, toda a casa, como se invocassem deuses. Já era quase meio-dia quando seu pranto começou a cessar. Silencioso e sem visão, apenas lhe restou procurar ajuda, mesmo que titubeasse em relação aos outros. Rastejou pelo chão. Primeiro atravessou o tapete branco de seu quarto que sibilava algumas blasfêmias. Chegou ao corredor e, agora, seu corpo sentia o mármore frio flertar com cada membro. Na sala encontrou porta-retratos quebrados, vidro espalhado e folhas de Kafka espalhadas pelo chão. Ficou a pensar quem havia quebrado suas coisas, rasgado seu livro. Não entendia o que estava acontecendo. Lembrava-se de ontem com certa dificuldade. Havia tomado algumas poucas taças de vinho e tentava escrever algo. Lembrava-se da angústia, de seus bloqueios, de suas dores, de seus questionamentos. Lembrava-se que não queria mais escrever sobre ele mesmo. Lembrava-se que queria escrever histórias de outrem. Lembrava-se que queria escrever histórias de outrem sem que houvesse comparação com sua própria vida (mesmo que houvesse). Lembrava-se que estava preso. Preso em sua própria poesia. Lembrava-se que buscava a libertação. A libertação que sempre existiu em sua poesia. Lembrava-se dessa negação. Lembrava-se do mal que lhe acometera e nada mais conseguiria escrever. Não tinha poder algum sobre sua própria vida. Estava de mãos atadas, talvez com sua poesia, talvez com sua redenção. Confundiam sua vida com sua poesia. Inventava, inventava inúmeros personagens, escrevia usando a voz feminina e, mesmo assim, confundiam-se. Sabia que seu corpo estava se (con)fundindo com sua poesia e nada poderia fazer. Seu tronco gelado já não se movia e seus membros já quase paralisavam. Seu último suspiro foi seu último gozo. No mármore gelado, fez-se o seu próprio gozo. Padeceu ali, ao lado daquela porra toda e, em seu túmulo, apenas algumas breves palavras:

- “Aqui jaz uma história mal contada”.

Amém.




4 comentários:

Anônimo disse...

Eu vi o Gregor, eu senti frio, me senti como o personagem...
Muito bom mesmo.

"Lembrava-se que estava preso. Preso em sua própria poesia. Lembrava-se que buscava a libertação. A libertação que sempre existiu em sua poesia."
Perfeito!!!

Anônimo disse...

Sua visita é sempre um prazer, valeu camila. :)

Jeff disse...

quem escreve sente das dores dessa "porra" toda... espero ter fim melhor! Beijos, jeff (estou acabando de ler "O Castelo" ("dele"0... e me trancando dentro do meu prório... ;)

Carolina Cristina disse...

Cami, desculpe minha ausência de blog e de corpo! Ando aérea e "presa" em alguns sentimentos... Rsss...

Adorei! Adorei! Adorei! Adorei tudo!!!

Li desde de "Diário de uma motorista - parte II", confesso apenas que fiqueicom preguiça de ler o post sobre Cuba...

Bjossssssssss....