terça-feira, 1 de junho de 2010

Direito à memória e à verdade: hora de abrir as páginas desta História




DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE: HORA DE ABRIR AS PÁGINAS DESTA HISTÓRIA





“Num tempo, página infeliz da nossa história, passagem desbotada na memória das nossas novas gerações, dormia a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída”, diz a letra da música Vai Passar, de autoria de Chico Buarque e Francis Hime. Assim, milhares de pessoas foram “subtraídas” do convívio durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985). Centenas foram os mortos e desaparecidos políticos. Milhares, os torturados, sequestrados e presos. Este período foi o mais sombrio da história deste País e, no último dia 29 de abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) perdeu a chance de reescrever esta página infeliz.



Isso porque manteve a interpretação de que a Lei de Anistia Brasileira (Lei nº6683/79) abrange os agentes de Estado que foram autores de crimes contra a humanidade. Com o objetivo de questionar a concessão da anistia de forma universal, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pediu uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153) para que a Lei fosse revisada. No entanto, por sete votos a dois, o STF rejeitou a proposta. “Questionamos a leitura hegemônica que fazem da Lei de Anistia. Houve a interpretação equivocada de que crimes conexos foram cometidos pela figura do Estado. Os crimes estão escondidos e não são públicos. Não é possível anistiar alguém que sequer foi processado”, avaliou Cecília Coimbra, presidente do grupo Tortura Nunca Mais.


“Esta decisão foi uma grande decepção e contraria todos os princípios humanitários. Uma verdadeira vergonha para o País”, declarou Laura Petit da Silva, 63 anos, diretora de escola municipal, aposentada e integrante da Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos. “Os crimes cometidos foram de lesa-humanidade; não foram crimes políticos, foram crimes comuns”, enfatizou Vitória Grabois, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais e ex-guerrilheira no Araguaia.


Além de contribuírem em organizações em prol dos direitos humanos, o que essas mulheres têm em comum? Ambas perderam familiares durante a ditadura militar. “Em 1973, tenho pai, irmão e primeiro marido desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia. Vivi na clandestinidade de 1964 a 1980. Desde que voltei ao convívio social, luto pelo esclarecimento dos fatos”, afirmou Vitória. “Eu tenho três irmãos desaparecidos – Lúcio, Jaime e Maria Lúcia – também no Araguaia”, disse Laura. O corpo de Maria Lúcia foi um dos únicos identificados. Em 1991, foram encontradas duas ossadas que foram encaminhadas para a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). No entanto, o processo de identificação foi bastante moroso e, somente em 1996, quando um militar entregou fotos e anotações do momento histórico que, finalmente, foram iniciadas as investigações. “No material entregue pelo militar, havia uma foto da minha irmã morta tal qual a ossada encontrada. 24 anos após a morte de minha irmã, houve a exumação do corpo e a confirmação de que se tratava de Maria Lúcia”, contou Laura.


Comissão da verdade

A luta destas mulheres é a extensão da luta de milhares de familiares que buscam informações sobre parentes e amigos desaparecidos na ditadura militar. “Queremos esclarecimento sobre os fatos. O que aconteceu? Por quê? Como? Por quem? Onde?”, questionou Vitória. “Nenhum de nós quer um banco de réus, queremos que o Estado brasileiro assuma sua responsabilidade e que abram os arquivos”, pontuou Cecília Coimbra.


No final do ano passado, o governo brasileiro propôs a criação da Comissão Nacional da Verdade, parte integrante no 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH). No entanto, de acordo com Cecília, a comissão não passa de um programa de boas intenções. “O que nós, movimentos sociais, propusemos em dezembro de 2008 – durante a Conferência Nacional de Direitos Humanos – era a criação de uma comissão para investigar crimes de repressão política, e não de conflito político, como está colocado agora. É preciso compreender que não houve guerra nesse País, houve extermínio”, ratificou.


Uma página que se abre – Brasil pode ser condenado por crimes de lesa-humanidade na Corte Interamericana

Diante da falta de responsabilidade do Estado brasileiro perante as atrocidades cometidas na ditadura militar, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), o grupo Tortura Nunca Mais e a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo recorreram à justiça interamericana por violação de direitos humanos, ajuizando ação na Comissão de Direitos Humanos da Corte Interamericana, ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA). Esta é uma ação que se estende desde 1995, quando familiares pediram respostas e o governo brasileiro não as forneceu, fato que os fizeram.


Em 2008, o caso referente à Guerrilha do Araguaia foi enviado à Corte. “O Brasil é signatário de inúmeros decretos entre a OEA e a Organização das Nações Unidas (ONU) que condenam crimes de lesa-humanidade. Vale lembrar que as leis internacionais estão acima das nacionais. Esperamos que o Estado brasileiro seja responsabilizado”, afirmou Cecília.


A audiência do processo será entre os dias 20 e 21 de maio, na Costa Rica. De acordo com informações da presidente do grupo Tortura Nunca Mais, a sentença pode demorar de três a sete meses.


O massacre no Araguaia

Quase 80 guerrilheiros contra centenas de oficiais das Forças Armadas. Esta foi situação da Guerrilha do Araguaia. Entre 1972 e 1974, 69 guerrilheiros partiram para as margens do rio Araguaia, localizado no sul do Pará. A maioria destes homens e destas mulheres tinha formação em engenharia e medicina, seguindo a linha estratégica de Che Guevara. Os guerrilheiros prestavam atendimento social à população concomitante a um trabalho de formação política e conscientização, à medida que conquistavam territórios e confiança.


Alguns camponeses aderiram ao movimento. No entanto, com a chegada desproporcional das Forças Armadas, o massacre foi inevitável. O governo da época enviou homens do Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia Federal e Polícia Militar do Pará, Goiás e Maranhão para combatê-los, com registros de total desproporcionalidade e covardia.


Pacto socialDiante de tantas mortes, desaparecidos políticos, torturas e massacres, o que leva o Estado brasileiro a ignorar tais fatos e ser o único país da América Latina a não abrir os arquivos da ditadura militar? Maquiavel talvez possa responder, quan­do fala em nome de uma segurança de Estado, conceito hoje definido como Razão de Estado, ou seja, a atuação dos governantes seguirá de acordo com a necessidade de segurança destes. “Nunca tivemos muitas ilusões no STF, já que a correlação de forças não é favorável. O que me parece é que desde 1985 foi feito um acordo que respaldou a ditadura militar”, provocou Cecília. A conjuntura política e o processo histórico que se estende em relação a esses fatos podem vir a resultar numa espécie de acordo entre militares e Estado, independentemente de governo.


Entre espinhos, a esperança floresce

Embora sejam atacados de revanchismo pelos setores conservadores da sociedade brasileira, movimentos sociais e organizações caminham bravamente em busca de justiça e verdade. Inclusive, as poucas informações conseguidas ao longo de todos esses anos se deve, única e exclusivamente, à mobilização das famílias que realizaram caravanas e investigações por conta própria. “Não queremos revanche; queremos justiça", con­cluiu Vitória Grabois.





Camila Marins para o jornal da Fisenge









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