sexta-feira, 1 de abril de 2011

Maria como as outras



01/04/2011

“Eu sou a Maria. Eu sou a Maria. Eu sou MARIA”. Repetia compulsivamente em frente ao espelho, sem ao menos se reconhecer. Lavava o rosto todos os dias pelas manhãs e fazia do sol seu melhor cúmplice. Quando o tempo nublava, ficava muda e fitava seus olhos no reflexo como se fosse Narciso em quadrante despedaçado. Começava o dia assim, e meditava contra as falsas acusações de negligência.

Contorcia-se pelo apartamento desarrumado, escovava os cabelos enquanto acessava sua caixa de e-mails. Nada de mais. Apenas anúncios de sites de compras coletivas, propagandas e vaidades destemperadas. Off. Terminava de se arrumar, ligava o som bem alto e tentava desanuviar qualquer desesperança parida naturalmente. Comia uma fruta. Afinal, tinha que manter sua dieta equilibrada. Precisava trabalhar, mesmo sem querer. Gostava mesmo de ser artista. De pintar pelas paredes do apartamento suas angústias mais profundas, mas dinheiro não tinha para sobreviver só da arte.

Tinha que trabalhar em uma multinacional e ser representada como um número no quadro de profissionais. Escolhia uma roupa qualquer, mas não esquecia-se do salto e da maquiagem muito bem desenhada. Pintava-se. Pintava-se de outra. Pegava o ônibus. Daqueles bem lotados, escondia a bolsa na frente do corpo e seguia o cotidiano comum a todos. No trabalho, mais e-mails e confusões administrativas. Apenas o café lhe era solidário. Gritos, tempo e prazos. Tudo isso atormentava sua rotina. Não compreendia essa tal obrigação de trabalhar. Só queria ser.
- “Mariaaaa”, gritava o chefe.
- “Pois não”, respondia.
- “Venha até a minha sala, por favor”, ordenava o superior com aquela educação mal disfarçada.

E lá ia Maria como as outras.
- “Por que não agendou a reunião com empresários coreanos?”
- “Porque o senhor pediu (na realidade, mandou – pensava secretamente) que eu retirasse o compromisso da agenda e o mantivesse em sigilo”.
- “Minha filha (aquele tom jocoso) você não entendeu direito. Eu não disse em momento algum a palavra sigilo. Você está aqui há dois anos e ainda não compreendeu a filosofia da empresa. Se existe compromisso, agende. Pronto. Entendeu bonitinha?”
- “Bonitinha o caralho”, pensou. Apenas pensou, mas segurou o impulso pelo seu cheque no dia 30.

Abaixou a cabeça e declarou:
- “Desculpe pelo equívoco, não vai mais ocorrer. Vou incluir o compromisso na agenda”.
- “Você não entendeu mesmo. Eu não disse que era para incluir agora. Olha, faz o seguinte minha filha (ironia das bravas), volte para sua mesa e responda aos e-mails da presidência, ok? Estamos entendidos? E que não volte a ocorrer”.

Assentiu com a cabeça e foi em direção à sua mesa. Olhava para o computador e não se enxergava. Sabia que aquela ligeira imagem refletida na tela não lhe pertencia e repetia: “Eu não sou isso. Eu não sou isso. Eu NÃO SOU”. Quis chorar, mas engoliu o café frio.
Arriou os ombros e seguiu a teclar. Olhava para o cantinho da sua mesa e havia um pocket book que ganhara de um amigo, cujo título não alinhava com sua alma: “Ânimo”. Tentava respirar, enquanto isso passava creme em suas mãos ressecadas. Rezava para que o relógio adiantasse algumas horas, mas em vão. Distraía-se com o café e alguns papos de cozinha.
Voltava aos afazeres. Tentava sair do automático, criar e pensar coisas novas; mas o ambiente lhe travava. Enfim, 8 horas terminadas. Uns amigos lhe chamavam para o chopp depois do expediente. Até ia, bebia alguns, ensaiava um porre, mas sentia-se vazia. Até cambaleava pelas ruas para se sentir mais leve e liberta do mundo ao qual pertencia obrigatoriamente e sem saída.
Já era tarde da noite, voltava só para casa. Desviava de corredores e colunas. Se pudesse, ficaria agachada no elevador e nunca mais sairia de lá. Pelo menos, o elevador lhe permitia mais respirações que lá fora. Não se entendia. Não entendia a incompreensão raivosa do mundo. A agressão gratuita. A raiva desmedida. A intolerância descabida. O ser obrigatório. Depois de refletir no elevador, adentrou em sua casa. Começou a procurar objetos e tomou posse de movimentos furtivos. Pintou. Pintou com toda sua voracidade. E, em alguns minutos, a parede de seu quarto estava quase preenchida, faltando apenas um espaço em branco. Tudo era vermelho. Sangue de seu sangue. Cortara, enfim, os pulsos e ilustrava uma vida em branco. Simplesmente em branco. Foi Maria.



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