Foto premiada pela ONU
A história de um outro Luiz, também filho do Brasil
Negro, pobre, estudante de jornalismo e militante, jovem tem fotografia selecionada em concurso da ONU
“Comia pasta de dente por falta de comida”, lembrou Luiz.
Camila Marins
Olhos que vivenciaram a tortura psicológica e física. Olhos que sofreram com o abuso sexual, preconceito e a miséria. Olhos que sentiram fome. Olhos que ainda têm fome. Fome de uma sociedade mais justa e solidária. Este olhar sonhador pertence ao jovem Luiz Roberto Lima, 35 anos, estudante de jornalismo e coordenador do Diretório Acadêmico de Comunicação da PUC-Campinas. Luiz foi um dos quatro selecionados para o concurso mundial de fotografia “Humanizando o Desenvolvimento”, promovido pelo Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) que selecionou 50 imagens de 27 países.
Participaram do concurso fotógrafos profissionais e membros da sociedade civil. O conteúdo enviado foi avaliado por representantes do IPC-IG, do Programa de Voluntários das Nações Unidas (UNV) e um fotógrafo profissional. Os olhos que já presenciaram o pior das mazelas sociais, hoje, registram por meio da lente fotográfica a realidade, rumo à construção de um mundo melhor. Militante de direitos humanos, Luiz explicou que o objetivo da foto, feita em 2009 em uma oficina de meio ambiente no distrito de Sousas, em Campinas, foi mostrar exemplos de superação social.
Já no 3º ano de jornalismo na PUC, Luiz é bolsista do Prouni e carrega uma história de luta e sobrevivência. Abandonado pela mãe na maternidade, ele cresceu em um orfanato, onde sofreu todos os tipos de violência possíveis. “Tinha muitos afazeres domésticos, como cuidar dos menores. Passava a noite inteira acordado, pois se os bebês chorassem, eu apanhava muito. Qualquer travessura era motivo para ficarmos sem comida. Muitas vezes, cheguei a comer pasta de dente, mesmo com uma dispensa enorme cheia de comida que, inclusive, chegava a estragar, mas eles não nos deixavam comer”, contou.
Entre espancamentos, assédio moral e fome, Luiz não foi imune ao preconceito, já que é negro. “O fato de ser negro pesava muito. Eu pedia a Deus para ser branco e assim ser adotado para libertar-me daquela situação. Apanhava feito um condenado, por motivos banais. Nós não podíamos contar para visitas, pois as surras eram piores”, relatou Luiz lembrando que seu apelido era “Negrinho do Pastoreio” e, por este motivo, simplesmente pelo fato de ser negro, recebia surras homéricas, assim como outros companheiros negros.
Além de negar comida e espancá-lo, as pessoas responsáveis pela instituição que o acolheu também surravam os bebês, segundo Luiz. “Quando as crianças de berço choravam muito, as tias pressionavam a cabecinha delas contra o berço. Na hora do banho, batiam muito. As crianças viviam marcadas. Lembro-me de um menino negro, chamado Jorginho, ele tinha um ano e meio aproximadamente. Ele chorava muito e quanto mais chorava, mais apanhava. O menino, coitado, só queria ficar no meu colo. Ele me via e chorava. Às vezes, a tia me fazia passar a noite inteira com ele no colo e não podia dormir”, declarou.
Mesmo com inúmeras doações à instituição, as crianças e os jovens não recebiam nada. De acordo com Luiz, sua principal memória do Natal era quando uma fábrica de brinquedos fazia uma imensa doação e as crianças nunca chegavam a ver os tais presentes. “Num determinado Natal aprontamos alguma coisa. Era comum no final de ano, algumas famílias nos levarem para suas casas, mas neste ano, devido a alguma travessura, passamos todos nós lá, com fome, vendo a caseira comemorando com a família e todos muito bem arrumados”, denunciou.
E o Luiz cresceu
Aos 11 anos, Luiz foi transferido para uma instituição para adolescentes. O menino sonhava que poderia viver melhor, pelo menos com mais tranquilidade e sem surras, mas não foi bem esse quadro que ele encontrou. “Diálogo era o da porrada. Era como se fosse um quartel, com as regras mais arcaicas que podiam existir, baseada na submissão e violência. Tinha um cara que cuidava da gente, chamado Benê, negro também. Ele era o mais violento batia com murros e pontapés. Era um ambiente de medo, revolta. Parecia um caldeirão com todos os ingredientes presentes, prontos pra explodir”, ele contou.
Mesmo com o corpo dolorido de violência e a alma castigada pela injustiça, Luiz alimenta um sonho: o de conhecer sua mãe. “Desde criança olho para as mulheres negras que encontro imaginando como seria minha mãe e, assim, meu olhar foi envelhecendo com as dificuldades para encontrar minha verdadeira família, mas a esperança ainda persiste em mim”.
Aos 16 anos, ainda sem perspectiva de adoção, Luiz pediu emancipação e foi morar em uma pensão. No entanto, pouco tempo depois, ele perdeu o emprego e foi morar na rua. “Aí que realmente eu vi o que era sofrer. Descobri que a violência, o abuso sexual sofrido na primeira instituição não chegavam perto do que era a rua - nua e crua”, revelou.
De acordo com levantamento feito pelo Ministério de Desenvolvimento Social, há uma predominância masculina (82%) entre as pessoas em situação de rua. A maior parte, 53%, situa-se na faixa etária de 25 a 44 anos. Nesta população, 30% se declararam negros, índice bem acima da média nacional, que é de 6,2%. Já o percentual dos que se consideram brancos é de 29,5% (esse índice é de 54% entre o conjunto dos brasileiros). “Conheci alguns "menores de rua" e comecei a acompanhá-los. Tentei furtar pra comer, mas não dava certo, eu não conseguia, diferenciava-me, dos demais. Alguns dos meninos e homens de ruas mais velhos, diziam que a rua não era pra mim. Na verdade, a rua não é pra ninguém”, alertou Luiz.
Depois de passar três anos em situação de rua, Luiz começou a viver com a solidariedade das pessoas que lhe ofereciam abrigo, comida e ajuda. Começava a construir uma nova vida e, desta vez com o apoio de amigos e companheiros.
Outro fato que revelou o preconceito aconteceu em um shopping center de São Paulo. “Comecei a trabalhar e já podia comprar minhas roupas de marca, que é o sonho de jovens da periferia. Fui com um amigo comprar o tão sonhado tênis. Mas como paguei à vista o vendedor, achou que eu era bandido e avisou o setor de segurança. Fui algemado pelo segurança em uma cadeira e comecei a levar tapa na cara, com um revólver apontado pra minha cara. O interessante é que meu amigo, branco, não apanhou. Eu gritava e o segurança pegou dois fios ligado na tomada e passou a dar choque, querendo saber do resto do dinheiro, querendo saber de que quadrilha eu era”, disse Luiz lembrando que todos os seus documentos estavam certos e não havia qualquer indício para que o acusassem. “As ameaças eram cruéis, a ponto de ele dizer que ia me penetrar com cabo de vassoura. Para minha sorte, chegou um chefe de segurança do turno da noite, e perguntou o que estava acontecendo, o segurança relatou e eu relatei”. Foi nesse momento que o rapaz foi liberado.
Após este episódio traumático, Luiz resolveu entrar em um supletivo e em um cursinho, momento em que passou no Curso de Ciências da Educação da UERJ, logo depois transferiu para Ciências Sociais. “O cursinho foi fundamental na minha trajetória, pois ele era alternativo, então me deu uma base socialista, de esquerda. Lá aprendi música, teatro, poesia, arte e esperança. Esperança para uma nova vida”. Sem dinheiro, ele resolveu arriscar e iniciou sua faculdade. Inicialmente, conquistou uma bolsa-auxílio, mas o governo da época (Garotinho) cortou o benefício e Luiz teve de abandonar no 3º ano e retornar à Campinas. “Procurei um emprego na cidade e fui trabalhar num call center. Fiquei um ano sem estudar e depois entrei na Puc para fazer Direito pelo Prouni. Fiz um ano e mudei para o Jornalismo”.
E foi como estudante de jornalismo que Luiz transformou seu olhar estético e crítico em visão de mundo. “Acredito que a revolução se faz no cotidiano. A construção de um mundo melhor, de um Brasil mais justo e mais igualitário se faz todos os dias e o jornalismo tem um papel fundamental na consolidação da democracia”, concluiu Luiz que caminha pelas esquinas de Campinas com máquinas fotográficas emprestadas, com passos pesados da vida, mas braços prontos para a construção de um mundo melhor.
Negro, pobre, estudante de jornalismo e militante, jovem tem fotografia selecionada em concurso da ONU
“Comia pasta de dente por falta de comida”, lembrou Luiz.
Camila Marins
Olhos que vivenciaram a tortura psicológica e física. Olhos que sofreram com o abuso sexual, preconceito e a miséria. Olhos que sentiram fome. Olhos que ainda têm fome. Fome de uma sociedade mais justa e solidária. Este olhar sonhador pertence ao jovem Luiz Roberto Lima, 35 anos, estudante de jornalismo e coordenador do Diretório Acadêmico de Comunicação da PUC-Campinas. Luiz foi um dos quatro selecionados para o concurso mundial de fotografia “Humanizando o Desenvolvimento”, promovido pelo Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) que selecionou 50 imagens de 27 países.
Participaram do concurso fotógrafos profissionais e membros da sociedade civil. O conteúdo enviado foi avaliado por representantes do IPC-IG, do Programa de Voluntários das Nações Unidas (UNV) e um fotógrafo profissional. Os olhos que já presenciaram o pior das mazelas sociais, hoje, registram por meio da lente fotográfica a realidade, rumo à construção de um mundo melhor. Militante de direitos humanos, Luiz explicou que o objetivo da foto, feita em 2009 em uma oficina de meio ambiente no distrito de Sousas, em Campinas, foi mostrar exemplos de superação social.
Já no 3º ano de jornalismo na PUC, Luiz é bolsista do Prouni e carrega uma história de luta e sobrevivência. Abandonado pela mãe na maternidade, ele cresceu em um orfanato, onde sofreu todos os tipos de violência possíveis. “Tinha muitos afazeres domésticos, como cuidar dos menores. Passava a noite inteira acordado, pois se os bebês chorassem, eu apanhava muito. Qualquer travessura era motivo para ficarmos sem comida. Muitas vezes, cheguei a comer pasta de dente, mesmo com uma dispensa enorme cheia de comida que, inclusive, chegava a estragar, mas eles não nos deixavam comer”, contou.
Entre espancamentos, assédio moral e fome, Luiz não foi imune ao preconceito, já que é negro. “O fato de ser negro pesava muito. Eu pedia a Deus para ser branco e assim ser adotado para libertar-me daquela situação. Apanhava feito um condenado, por motivos banais. Nós não podíamos contar para visitas, pois as surras eram piores”, relatou Luiz lembrando que seu apelido era “Negrinho do Pastoreio” e, por este motivo, simplesmente pelo fato de ser negro, recebia surras homéricas, assim como outros companheiros negros.
Além de negar comida e espancá-lo, as pessoas responsáveis pela instituição que o acolheu também surravam os bebês, segundo Luiz. “Quando as crianças de berço choravam muito, as tias pressionavam a cabecinha delas contra o berço. Na hora do banho, batiam muito. As crianças viviam marcadas. Lembro-me de um menino negro, chamado Jorginho, ele tinha um ano e meio aproximadamente. Ele chorava muito e quanto mais chorava, mais apanhava. O menino, coitado, só queria ficar no meu colo. Ele me via e chorava. Às vezes, a tia me fazia passar a noite inteira com ele no colo e não podia dormir”, declarou.
Mesmo com inúmeras doações à instituição, as crianças e os jovens não recebiam nada. De acordo com Luiz, sua principal memória do Natal era quando uma fábrica de brinquedos fazia uma imensa doação e as crianças nunca chegavam a ver os tais presentes. “Num determinado Natal aprontamos alguma coisa. Era comum no final de ano, algumas famílias nos levarem para suas casas, mas neste ano, devido a alguma travessura, passamos todos nós lá, com fome, vendo a caseira comemorando com a família e todos muito bem arrumados”, denunciou.
E o Luiz cresceu
Aos 11 anos, Luiz foi transferido para uma instituição para adolescentes. O menino sonhava que poderia viver melhor, pelo menos com mais tranquilidade e sem surras, mas não foi bem esse quadro que ele encontrou. “Diálogo era o da porrada. Era como se fosse um quartel, com as regras mais arcaicas que podiam existir, baseada na submissão e violência. Tinha um cara que cuidava da gente, chamado Benê, negro também. Ele era o mais violento batia com murros e pontapés. Era um ambiente de medo, revolta. Parecia um caldeirão com todos os ingredientes presentes, prontos pra explodir”, ele contou.
Mesmo com o corpo dolorido de violência e a alma castigada pela injustiça, Luiz alimenta um sonho: o de conhecer sua mãe. “Desde criança olho para as mulheres negras que encontro imaginando como seria minha mãe e, assim, meu olhar foi envelhecendo com as dificuldades para encontrar minha verdadeira família, mas a esperança ainda persiste em mim”.
Aos 16 anos, ainda sem perspectiva de adoção, Luiz pediu emancipação e foi morar em uma pensão. No entanto, pouco tempo depois, ele perdeu o emprego e foi morar na rua. “Aí que realmente eu vi o que era sofrer. Descobri que a violência, o abuso sexual sofrido na primeira instituição não chegavam perto do que era a rua - nua e crua”, revelou.
De acordo com levantamento feito pelo Ministério de Desenvolvimento Social, há uma predominância masculina (82%) entre as pessoas em situação de rua. A maior parte, 53%, situa-se na faixa etária de 25 a 44 anos. Nesta população, 30% se declararam negros, índice bem acima da média nacional, que é de 6,2%. Já o percentual dos que se consideram brancos é de 29,5% (esse índice é de 54% entre o conjunto dos brasileiros). “Conheci alguns "menores de rua" e comecei a acompanhá-los. Tentei furtar pra comer, mas não dava certo, eu não conseguia, diferenciava-me, dos demais. Alguns dos meninos e homens de ruas mais velhos, diziam que a rua não era pra mim. Na verdade, a rua não é pra ninguém”, alertou Luiz.
Depois de passar três anos em situação de rua, Luiz começou a viver com a solidariedade das pessoas que lhe ofereciam abrigo, comida e ajuda. Começava a construir uma nova vida e, desta vez com o apoio de amigos e companheiros.
Outro fato que revelou o preconceito aconteceu em um shopping center de São Paulo. “Comecei a trabalhar e já podia comprar minhas roupas de marca, que é o sonho de jovens da periferia. Fui com um amigo comprar o tão sonhado tênis. Mas como paguei à vista o vendedor, achou que eu era bandido e avisou o setor de segurança. Fui algemado pelo segurança em uma cadeira e comecei a levar tapa na cara, com um revólver apontado pra minha cara. O interessante é que meu amigo, branco, não apanhou. Eu gritava e o segurança pegou dois fios ligado na tomada e passou a dar choque, querendo saber do resto do dinheiro, querendo saber de que quadrilha eu era”, disse Luiz lembrando que todos os seus documentos estavam certos e não havia qualquer indício para que o acusassem. “As ameaças eram cruéis, a ponto de ele dizer que ia me penetrar com cabo de vassoura. Para minha sorte, chegou um chefe de segurança do turno da noite, e perguntou o que estava acontecendo, o segurança relatou e eu relatei”. Foi nesse momento que o rapaz foi liberado.
Após este episódio traumático, Luiz resolveu entrar em um supletivo e em um cursinho, momento em que passou no Curso de Ciências da Educação da UERJ, logo depois transferiu para Ciências Sociais. “O cursinho foi fundamental na minha trajetória, pois ele era alternativo, então me deu uma base socialista, de esquerda. Lá aprendi música, teatro, poesia, arte e esperança. Esperança para uma nova vida”. Sem dinheiro, ele resolveu arriscar e iniciou sua faculdade. Inicialmente, conquistou uma bolsa-auxílio, mas o governo da época (Garotinho) cortou o benefício e Luiz teve de abandonar no 3º ano e retornar à Campinas. “Procurei um emprego na cidade e fui trabalhar num call center. Fiquei um ano sem estudar e depois entrei na Puc para fazer Direito pelo Prouni. Fiz um ano e mudei para o Jornalismo”.
E foi como estudante de jornalismo que Luiz transformou seu olhar estético e crítico em visão de mundo. “Acredito que a revolução se faz no cotidiano. A construção de um mundo melhor, de um Brasil mais justo e mais igualitário se faz todos os dias e o jornalismo tem um papel fundamental na consolidação da democracia”, concluiu Luiz que caminha pelas esquinas de Campinas com máquinas fotográficas emprestadas, com passos pesados da vida, mas braços prontos para a construção de um mundo melhor.