Carta para Ingmar Bergman
Ingmar Bergman foi um dramaturgo e cineasta sueco que produziu filmes de extrema relevância e não se deixou vender para Hollywood. Faleceu aos 89 anos
Camila Marins em algum momento de algum ano passado...
Aprendi o significado da palavra sarabanda com você, querido Bergman. ‘Saraband’ foi um dos primeiros filmes que eu assisti. Lembro-me até hoje que eu fiquei extremamente emocionada com a película, principalmente com a questão musical e todos os significados e significantes em torno disso. Depois de ‘Saraband’, vieram muitos outros, como ‘Morangos Silvestres’; ‘O Sétimo Selo’; ‘Gritos e Sussurros’ (um dos meus prediletos). Ah e lembro-me quando me chegou ‘A Paixão de Ana’ e fiquei ainda mais atônita com a sua forma de trabalhar o existencialismo agregado à arte.
Uma análise conceitual feita de forma extremamente sensível e artística em torno de temas existenciais como: fé, valores, crença e solidão. Espantou-me o seu trato com a solidão, pois este tema é bastante recorrente em meus textos e pude comprovar ainda mais seus significados. “Quanto pior as pessoas estão, menos elas reclamam, até que chega o silêncio”, essa é uma das frases de um dos personagens. E essa é a forma como Andreas, um dos personagens principais do filme, trata a vida: de maneira silenciosa, até que chega Ana.
Assim como a descrição da própria atriz que a interpreta, Ana é assim: desejo intenso de verdade. Porém, ela se mostra uma contradição. Ela diz em certo momento: “Eu acredito em Deus, mas não ensinaria meus filhos a acreditarem”. Através dessa frase, podemos resumir Ana: a verdade dela nem sempre vale para o outro, ou seja, talvez nem ela mesma acredite em suas crenças ou estas sejam rasas como suas lágrimas. Querido Bergman, eu poderia descrever Ana como um poço de imaginação e ilusão, ciente de que esse poço talvez seque um dia. Crer se torna um perigo para ela mesma, para sua própria sanidade. Basta lembrar das repetições da carta de seu marido: “violência física e psíquica”. Por isso, talvez ela viva tão atormentada por pesadelos, não há mais sonhos em sua alma... Na realidade, há tanta descrença e desesperança que ela reinventa verdades únicas e intrínsecas à sua respiração, pois é através desse mecanismo de transposição de verdade que ela sobrevive ao mundo ao seu redor. E os pesadelos de Ana nada mais fazem do que engessar sua própria liberdade.
Uma cena que me comoveu foi quando Andreas e Ana estavam hipnotizados pela TV e ouvem um barulho, o que provavelmente seria um pássaro. E ao encontrarem a pequena ave, eles decidem pôr fim ao sofrimento do animal, matando-o com uma pedra. Quase arrependida, Ana ainda pergunta: “Será que ele teria sobrevivido?”. Mas ela mesma se convence de que é melhor pôr fim logo ao sofrimento. A partir daí, o casal passa a se ausentar do outro, assim como o torturante silêncio. Não havia mais reconhecimento mútuo, apenas inverdades, ilusões e silêncio. Intervalos constantes de negação e até mesmo negação da negação. E a cena final é digna de grandes mestres. O homem finalmente percebe que, ao lado de Ana, não se reconhecia mais. Ele só se reconhecia no silêncio, no caminhar solitário de um lado para o outro na neve... “Furtivo como um vira-lata espancado”... Obrigada por esse e outros filmes que tanto me trouxeram sentido. Que a existência faça sentido, pelo menos para você que está do outro lado, querido Bergman!
O não à Hollywood
Lembro-me de uma matéria que li na Folha de S.Paulo sobre a sua resistência. A sua identidade, a sua criatividade, a sua originalidade e principalmente a sua independência. Não! Você não se vendeu aos estúdios hollywoodianos e ainda provocou: "encomendar um filme meu, da mesma maneira que alguém encomenda um quadro ao pintor, sem primeiro dizer ao artista como o quadro deve ser. Acredito que essa seria a melhor das idéias". No entanto, sabemos que Hollywood não funciona assim e, inclusive, tinha planos para produzir seus filmes com ‘grandes’ astros da época. Mas todos nós sabemos que você escolhia minuciosamente seu elenco.
Admiro a forma como ignorou e rejeitou os assédios hollywoodianos. A maneira como considerava a negociação promíscua da indústria do cinema é admirável. "Seria interessante, se um dia, um cientista fosse capaz de inventar uma escala de mensuração capaz de estabelecer quanto talento, determinação, iniciativa, gênio e capacidade de criação foram destruídos pela indústria em sua impiedosa máquina de salsichas", você afirmou. Não tenho mais o que fazer do que me render às suas considerações. Até mesmo em suas atitudes, você, caro Bergman, ia a favor da sua verdade! Independentemente de mercado, interesses ou negócios.
Que a Paixão pelo cinema e pela arte sejam capazes sempre de atravessar propostas Silvestres. Que nesta Sarabanda do existencialismo sejamos capazes de Selar nossa verdade. Seja por meio de Gritos, seja por meio de Sussurros, clamemos a Sétima arte! Obrigada, querido Bergman. - Camila Marins