quarta-feira, 4 de maio de 2011

Os filhos do abandono



Os filhos do abandono

04/05/2011

Ato I
Tinha dez anos e brincava com um saco de arroz desenhado como se fosse boneca. Mas tinha tempo contado, pois esse arroz era o único do mês, por isso, não tinha muito tempo para brincar. Aprendeu cedo a cozinhar, tinha os dedos infantis queimados no alho e óleo. Muitas vezes, só óleo. Dois anos depois estava quase saindo da 6ª série e tinha fascínio por triturar as coisas. Triturava o lápis, o batom, o alho, a borracha e, enfim, o giz. A professora não entendia porque sua caixa de giz sempre estava vazia e ela com as marcas em sua mochila vermelha. Cheirava o giz, tal qual pai e mãe. Aprendia. A imitação era seu melhor presente.

Ato II
Sempre sonhava com a pipoca da esquina. Seu pai nunca tinha dinheiro para lanche extra, mal tinha para o sapato surrado. Era aquele que fazia bicos esporadicamente, enquanto a mulher tomava conta dos cinco filhos. E o menino ainda sonhava. Pipoca doce com leite condensado. Pipoca salgada com queijo e bacon. Sonhava com a pipoca e sempre cabisbaixo pelas esquinas da escola. E no tão sonhado dia das crianças no qual as pobres nada ganham, a não ser a caridade e o desejo estimulado pelo consumismo de mercado, ele ganhou uma pipoca do seu Zé da esquina. Tinha quase 14 anos. Quase um homenzinho e sonhava com aquela pipoca. Comeu daqueles sacos grandes com bastante queijo e no final uma surpresa. Seu Zé fora generoso. Nunca imaginara tamanha bondade. Não jogou o saco fora e deixou para abrir em casa. Deliciou-se. Mal dormiu de tanta satisfação. (Eu, sinceramente, caro leitor, lembro-me da sensação do conto de Clarice Lispector intitulado Felicidade Clandestina). No dia seguinte, seu Zé, muito sorridente chamou o garoto e perguntou se ele havia gostado do presente. Assentiu com a cabeça. E seu Zé denunciou: “Vai ter que me pagar garoto, presentinho não é de graça não. Pode tratar de vender essa trouxinha de pó aqui na escola e bem rapidinho. Vai ter que fazer valer seu nariz feliz ai”. Foi assim que as manchetes de jornal começaram.

Ato III
“Pixaim, tribufu de carvão”, era como era chamada na escola desde cedo, além de muitos outros apelidos. Até alguns professores zombavam de seu cabelo. Sempre pensava que tinha namoradinhos, mas eles (literalmente) lhe chutavam a bunda ou a faziam pegar em suas partes íntimas fazendo ser uma brincadeira inocente, mas ao final da aula lá estava ela com a mão embaixo da mesa de algum menino. O mesmo que, mais tarde, lhe chutaria a bunda, lhe xingaria e até tentaria pôr fogo em seus cabelos. Sim, era negra. Era negra como muitas, mas não se arrumava ou se entendia como periguete do bairro. Todos os dias sentava na calçada da escola e chorava. Chorava muito até perder o fôlego. Um dia, se ergueu. Se ergueu tanto que começaram a lhe pagar pelo programa. Tinha apenas 12 anos e já tinha agenda marcada após a escola. Quem era o pixaim? 

4 comentários:

David Mussel disse...

Camila! Não conhecia sua veia cronista e poeta e tenho que dizer: adorei! Muito bom texto esse! já pensou em fazer alguma obra audiovisual tb? :D

O Desbunde disse...

rsrsrs escrevi esse texto ontem meio bêbada e só agora estou revisando os errinhos rsrsrs Já pensei em fazer alguma obra audiovisual sim, mas nunca pus em prática. Any idea??? : )

David Mussel disse...

uma escrita como Baudelaire então, rsrs. Na verdade a ideia que tenho é em animação. Ja ouviu falar do xineasta Satoshi Kon (Tokio Godfathers e Paprika): ele faz animações mto diferentes e dramáticas, algo realmente pouco usual e abre caminho para muitas possibilidades. Ao ler teu texto, principalmente o Ato 3, imainei algo nessa vertente. Se tiver a fim de algo parecido, me fala: a gnt pode marcar um dia pra conversar sobre o assunto. :-)

O Desbunde disse...

Nossa adoreiiiiiii!!! Não conhecia Satoshi Kon não, estou procurando no youtube! Adorei a ideia. super topo!