Visibilidade trans: o que
comemorar?
#JeSuisTravesti #JeSuisTrans
29 de janeiro é dia nacional da visibilidade transexual. Quantas pessoas
trans e travestis você conhece que estão no mercado de trabalho, nas
universidades e nos espaços de disputa política? Podemos contar nos dedos a
invisibilidade trans na sociedade e afirmada pelo Estado. No ano passado, por
exemplo, apenas 95 travestis, transexuais e transgêneros inscreveram-se para o Exame Nacional de Ensino Médio (Enem), utilizando o nome social, de
acordo com informações do
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Por outro lado, segundo o movimento TransRevolução, em 2014 foram
contabilizados 120 assassinatos de pessoas trans no Brasil. A superação dessa dicotomia só será possível com
cidadania, políticas públicas e igualdade de direitos e oportunidades. Presidenta
do TransRevolução, prostituta e trans, Indianara Siqueira fala sobre
preconceitos, a incansável e corajosa luta pela visibilidade trans e os sonhos
para um futuro com respeito e igualdade.
Como surgiu o 29 de janeiro?
Essa data é significativa para o movimento de travestis e transexuais,
pois foi em janeiro de 2004 que 27 pessoas trans lançaram, no Congresso
Nacional, a campanha nacional: “Travesti e Respeito, já está na hora dos dois
serem vistos juntos: em casa, na boate, na escola, no trabalho, na vida”. Desde
então, a data estabelece um sentido político de luta pela igualdade, respeito e
visibilidade de pessoas trans. Entidades de todo país saem às ruas ou ocupam
espaços políticos no exercício da cidadania, processo contínuo do qual pessoas
trans são alijadas pelo preconceito, pela discriminação e violência.
Infelizmente, o movimento trans tem mais reivindicações e denúncias a
comemorações. É uma data que reafirmamos: "Contra a transfobia, a nossa
luta é todo dia!".
Como é o atual quadro de violência e discriminação das pessoas trans no
Brasil?
O Brasil lidera o ranking de violência homofóbica e no mundo é o país onde
ocorrem mais assassinatos de travestis e transexuais. O México é o segundo
colocado do ranking e, ainda assim, o Brasil contabiliza quatro vezes mais
mortes do que este. O número de travestis e transexuais que são assassinadas
pode ser ainda maior, pois de acordo com o Grupo Gay da Bahia (GGB), que há
três décadas realiza o levantamento dos crimes homofóbicos no país, os crimes
contra pessoas trans são subnotificados. Em geral, são contabilizados como
mortes de homossexuais, inviabilizando políticas públicas e visibilidade
social. Para se ter uma ideia do problema, a expectativa de vida de uma
travesti e transexual brasileira gira em torno dos 30 anos, enquanto, em média,
a expectativa de vida de um brasileiro é
74,6 anos segundo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
E a inserção no mercado de trabalho?
Estima-se que 90% das travestis e transexuais brasileiras se prostituem
atualmente no Brasil. Esta é uma proporção alarmante, porque nunca houve 90% de
um grupo de pessoas prostituindo-se para viver, nem na história do Brasil, nem
no mundo. Só mesmo travestis e transexuais. Em termos comparativos, apenas 95
travestis, transexuais e transgêneros inscreveram-se para realizar o Exame
Nacional de Ensino Médio (Enem), utilizando o nome social em 2014. Contudo, foram
120 assassinatos (Fonte: TransRevolução) desse mesmo contingente populacional
no mesmo ano. Onze é o número que separa uma realidade da outra. Podemos dizer
que, praticamente, uma geração de Enem morre por ano.
Agora, em relação à cirurgia acompanhamos uma burocratização e enorme
violência institucional. Como você avalia?
Apenas no Estado São Paulo, há uma fila de 3.200 pessoas que desejam
realizar a cirurgia de transgenitalização, mas somente uma cirurgia é realizada
ao mês, ou seja, 12 cirurgias ao ano. Quem entrar na fila agora terá que
esperar 266 anos para realizar esse procedimento cirúrgico pelo Sistema Único
de Saúde/SUS no Brasil. O Hospital Pedro Ernesto (HUPE), no Rio de Janeiro, que
também realiza esse procedimento, está fechado para inclusão de novos pacientes
desde 2013 e atende de forma precária. Some tudo isso ao não reconhecimento das
identidades trans, ao abandono familiar, a evasão escolar, a precarização
laboral, a exclusão do mercado de trabalho e marginalização.
Sabemos a dificuldade de aferição dos casos de assassinatos e violência.
Por que isso acontece? O disque 100 é efetivo?
Porque travestis e transexuais não são de fato. Então, quando somos
agredidxs ou mortxs é noticiado ou registrado, como: "Homem vestido de
mulher" ou "homossexual", pois o Estado não nos reconhece
legalmente enquanto travestis/transexuais/transgêneros. Nesse caso, legalmente
quem morreu foi o homem ou a mulher que foram declarados no nascimento. O
disque 100 é só pra estatísticas mesmo.
As Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs) estão
preparadas para casos de violência a pessoas trans?
Bom, a DEAM não está preparada nem pra atender mulheres cisgêneras [pessoas que foram designadas com um gênero
ao nascer e se identificam com ele], então imagina trans. Mas temos uma recomendação
agora para que as DEAMS do RJ, ao menos, estendam a lei Maria da Penha para
mulheres transexuais, que se declarem como tal, ou seja, redesignadas ou
estejam no programa pra operar (não para as que se declaram travestis). O
Estado, na realidade, é o que mais nos violenta não reconhecendo nossa
identidade de gênero nem como nos definimos ou declaramos. Poucos agentes nos
destinam tratamento adequado.
Que políticas públicas são fundamentais para a visibilidade trans? Como
enfrentar e transcender imposições normativas e binárias?
O mais importante seria a aprovação do projeto de lei de identidade de
gênero João W. Nery de autoria do deputado federal Jean Wyllys ou a sanção do
PL 72/2007, que já se encontra aprovado no legislativo em Brasília e é um
adendo à lei 6015 de 1973. Isso seria um avanço para que as pessoas trans
tivessem uma inclusão social, na educação principalmente. Para enfrentar
situações normativas/binárias é justamente quebrando regras dessas situações,
não se deixando enquadrar para poder existir, mas sim existir enquanto ser
humano, pessoa de direito e sendo, assim, respeitado.
Como você avalia a atuação dos meios de comunicação na afirmação de
estereótipos e preconceitos?
Os meios de comunicação reforçam esses estereótipos e violentam pessoas
trans através da multiplicação desses estigmas e preconceitos. A maioria das
notícias veicula "Homem vestido de mulher" ou
"homossexual", sem considerar identidade de gênero e cidadania trans.
Teremos o parlamento mais conservador de todos os tempos. Como
fortalecer as pautas dos movimentos sociais diante de tantos ataques?
Mostrando ao parlamento nas ruas, notas de repúdios/manifestos o nosso
descontentamento. Só unidos nas vozes das ruas mostraremos nosso descontentamento.
Na minha opinião, a transfobia é um dos mais graves problemas sociais
justamente por sua invisibilidade. Além de políticas públicas, qual o papel de
solidariedade do conjunto da sociedade, dos movimentos sociais e populares, e
movimentos de trabalhadorxs em geral?
Escutar as reivindicações do movimento trans e se unir sem quererem nos
silenciar "achando que sabem o que é melhor pra nós" e nos
emprestando e colocando à nossa disposição seus aparatos e, principalmente,
multiplicando nossas vozes. Por isso, afirmamos que a nossa luta contra a
transfobia não se resume a um único dia de visibilidade, mas é uma luta árdua e
diária em que as poucas conquistas são muito comemoradas. Mas queremos mais:
queremos o reconhecimento das nossas identidades de gênero, queremos inclusão
social, queremos direito à educação, queremos ter chances no mercado de
trabalho.
A prostituição ainda sofre ataques moralistas e é criminalizada pela
sociedade e até por setores progressistas do campo da esquerda. Qual a sua
opinião? Qual a importância do projeto intitulado Gabriela Leite?
A prostituição nada mais é do que sexo em troca de dinheiro. A
importância do Projeto é justamente nos tirar da marginalidade e os nossos
prestadores de serviços também, os ditos "cafetões/cafetinas", que
também sofrem um estigma e acabam sendo explorados por policiais corruptos e
milícias, justamente por viverem na ilegalidade. O PL não resolveria todos os
problemas, mas ajudaria muito a diminuí-los.
Entrevista: Camila Marins
Revisão: André Vieira